06
Mar 10

 "Tudo isto são coisas, coisas que nós podemos amar. Mas não posso amar palavras. É por isso que não aprecio as doutrinas, não têm dureza ou moleza, não têm arestas, não têm cheiro, nada têm senão palavras"

Hermann Hesse, "Siddhartha, um poema indiano"

 

Embora não tivesse publicado de imediato a minha história sobre "coisas" e "palavras", devo dizer que pensei muito no assunto - Então como conseguirei passar um dia assim, despojada de tudo e mais alguma coisa?

Mas mesmo antes de começar, decidi que talvez nem fosse assim tão mau perguntar a umas quantas pessoas o que achavam sobre isto. Umas aceitaram a pergunta, outras não (a resposta era quase sempre a mesma: "são mesmo assuntos para ti...") mas mesmo assim ainda tive alguns resultados:

"Coisa é algo que tem características. Por exemplo, um telemóvel é uma coisa, tem as suas características próprias que o definem. "Coisa" não é algo concreto porque não existe UMA coisa !

Palavra? Oh, uma palavra é algo que utilizamos para criar frases, para podermos comunicar... As palavras são algo essencial para o ser humano, porque ele precisa de comunicar."

Vem me a parecer que afinal não estava tão enganada quanto isso.

Foi um dia diferente, esse de viver no mundo à parte. De início, o silêncio é reconfortante e o desafio parece não ser nada de complicado. Estamos sozinhos, longe das pessoas, afinal não há nada de diferente na manhã ... Acordamos assim todos os dias. Fazemos o caminho de todos os dias: Não há nada. Não há pessoas, não há o vizinho do quinto esquerdo nem as flores da loja ao pé da padaria. O café a nada sabe e os carros não têm ocupantes. Não há jornais nem folhas no chão ... Não há cor, não há luz. Nada há para além do nada.

Se nada existe, significará então que TUDO são coisas. E se tudo o que temos (gente incluida) desapareceu nesta ginástica mental de ausentar "coisas", será que nós próprios existiremos neste mundo de coisa nenhuma ?

Assustei-me, e nem cinco minutos aguentei nesta ausência de sentidos. 

Segui o meu caminho e continuei o meu dia (felizmente levantei-me mais tarde que o costume). Agora, tendo todas as "coisas" de volta, recuperando os meus sentidos, experimentei, a medo, viver sem palavras: Não ouço, não falo, não escrevo.

Levanto o braço e digo olá à senhora da mercearia que passa, ela acenou-me de volta. Ao almoço, sorrio enquanto como uma boa pratada de massa, a minha avó entendeu e correu à cozinha para me buscar mais um prato. Sigo caminho, vejo-o, sorrio-lhe, abraço-o, e ele entendeu que quero passar o resto da minha vida ao lado dele.

Mantenho a surdo-mudez propositada. Não me sinto mal.

Eles usam palavras, eu estou num mundo a parte. Faço-lhes gestos, eles entendem.

Não preciso de palavras,"não têm cores, não têm cheiro, não têm gosto, nada têm senão palavras" !

 

Assumo então que, depois desta aventura, sou totalmente dependente das MINHAS "coisas". Mas palavras .. não são absolutamente necessárias.

Um dia, se calhar, escrevo um blog só com gestos. 

publicado por mafaa às 16:03
música: Extravagante - Jorge Cruz

The art of Seeing é parte dos blogs de interesse de misspiafashion.blogs.sapo.pt. Obrigada pelo reconhecimento :D
Março 2010
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6

7
8
9
10
11
12
13

14
15
16
17
18
19
20

21
22
23
24
25
26
27

28
29
30
31


arquivos
mais sobre mim
pesquisar
 
Cautela, que ninguém ouça
O segredo que te digo:
Dou-te um coração de louça
Porque o meu anda contigo


José Saramago, aos seus 18 anos
blogs SAPO